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Garantias constitucionais em xeque: o risco de transformar cautela em castigo

  • Foto do escritor: mauricio bandarra
    mauricio bandarra
  • 22 de out.
  • 3 min de leitura
Garantias constitucionais em xeque

A expansão das medidas cautelares no processo penal brasileiro trouxe importantes instrumentos para equilibrar a necessidade de investigação e a preservação dos direitos individuais. No entanto, a aplicação desmedida de medidas como o bloqueio de contas bancárias tem revelado um grave desvio de finalidade: a transformação da cautela em punição antecipada, especialmente em casos que envolvem o crime de lavagem de dinheiro. Essa distorção afronta diretamente os princípios constitucionais da presunção de inocência, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, além de esvaziar o sentido garantista do processo penal.


O Código de Processo Penal, ao tratar das medidas cautelares pessoais e patrimoniais, estabelece balizas claras para sua aplicação. O que se observa, contudo, é que em muitas investigações envolvendo o pacote acusatório de crimes preferido das autoridades, organização criminosa e lavagem de dinheiro — especialmente quando envolvem servidores públicos e agentes políticos — o bloqueio de bens e valores tem sido utilizado como forma de sancionar preventivamente o investigado, antes mesmo de qualquer juízo de culpa.


O artigo 125 do CPP autoriza o sequestro de bens quando houver indícios de proveniência ilícita, e o artigo 4º da Lei nº 9.613/1998 (Lei de Lavagem de Dinheiro) reforça a possibilidade de bloqueio e indisponibilidade patrimonial por decisão judicial. Todavia, tais medidas constritivas estão condicionadas à demonstração de necessidade e proporcionalidade, com vistas a evitar prejuízos desmedidos e efeitos colaterais indevidos.


Quando o bloqueio atinge integralmente o patrimônio do acusado — inclusive valores de natureza alimentar — extrapola o caráter instrumental da cautelar e adquire contornos punitivos, esvaziando o direito ao mínimo existencial e comprometendo o sustento de dependentes e familiares.

Em um dos casos do escritório, houve o reconhecimento da vulnerabilidade social e familiar de investigada ao substituir a prisão preventiva por medidas menos gravosas, como a monitoração eletrônica prevista no art. 318, V, do CPP, contudo, contraditoriamente, impôs-se bloqueios patrimoniais amplos que inviabilizaram a própria sobrevivência da família. A incoerência revela uma falha de coerência sistêmica: ao mesmo tempo em que se protege formalmente o convívio familiar, negou-se, na prática, o acesso aos meios materiais que tornam essa convivência possível.


A Constituição Federal, em seu art. 5º, incisos LIV, LV e LVII, consagra os pilares do devido processo legal, do contraditório e da presunção de inocência. Nenhum desses princípios admite que o Estado, sob pretexto de cautela, imponha efeitos punitivos a quem ainda não foi condenado. O bloqueio de contas bancárias, quando total e por tempo indeterminado, atinge não apenas o acusado, mas toda a sua rede de dependência econômica — cônjuges, filhos e familiares —, produzindo efeitos irreversíveis antes mesmo do trânsito em julgado da sentença. O resultado é uma forma velada de pena patrimonial antecipada, muitas vezes sem que haja a correta individualização dos bens patrimoniais de origem ilícita.


O processo penal não pode ser instrumento de neutralização social do investigado. Sua finalidade é garantir o equilíbrio entre a persecução penal e os direitos fundamentais. A função cautelar existe para resguardar o resultado útil do processo, não para substituir a pena ou provocar desestruturação financeira e familiar. O bloqueio de ativos deve sempre ser limitado, revisável e fundamentado em dados concretos que demonstrem risco efetivo de dissipação de valores, sob pena de se transformar em mecanismo de punição simbólica e de desgaste público.


Em um contexto em que a criminalização de condutas ligadas à administração pública tende a ser acompanhada de intensa repercussão midiática e pressão social, a prudência judicial torna-se ainda mais necessária. A aplicação de cautelares desproporcionais só alimenta uma lógica de antecipação do castigo e enfraquece a legitimidade do próprio sistema de justiça. Como ensina a Constituição, não há justiça quando a coerência entre meios e fins se rompe em nome da aparência de rigor.

 
 
 

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