Quando o Direito Penal Exagera: O Uso Direto do Produto da Corrupção Não é Lavagem de Dinheiro
- mauricio bandarra
- 16 de jun.
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Combater a corrupção é, sem dúvida, essencial à proteção da moralidade administrativa e da confiança nas instituições públicas. Contudo, é preciso atenção redobrada quando o rigor repressivo avança sobre a racionalidade jurídica e atribui contornos penais a condutas que, embora reprováveis, não preenchem os requisitos típicos a serem consideradas como crimes.

Há processos penais, em que o Estado enquadra como o crime de lavagem de dinheiro situações nas quais o agente simplesmente destina os valores indevidos ao consumo próprio ou à aquisição de bens e serviços, ainda que os pagamentos sejam realizados por interposta pessoa. Alega-se, com frequência, que essa forma de pagamento teria como objetivo ocultar a titularidade dos valores e, portanto, configuraria dissimulação patrimonial. Mas essa tese colide frontalmente com a natureza do crime de lavagem de capitais, que exige mais do que o simples uso da vantagem indevida: exige intenção específica de ocultar ou dissimular a origem ilícita dos recursos.
A jurisprudência e a doutrina penal mais consistente distinguem com clareza o uso direto do proveito do crime da conduta autônoma de branqueamento. O primeiro é mero exaurimento do delito antecedente, enquanto que o segundo exige uma ação voltada à dissimulação ou ocultação patrimonial com finalidade de conferir aparência de legalidade ao recurso sujo. Em outras palavras: gastar valor de propina não significa a ocultação ou dissimulação da sua origem.
Essa distinção, embora simples, tem sido ignorada em muitas denúncias penais. Observe o caso hipotético em que investigado por corrupção se utiliza de valores indevidos para adquirir, via transferências bancárias e PIX, bens materiais para melhorias em sua residência por meio de um terceiro, mas todos direcionados a empresas reais, prestadoras de serviço, devidamente registradas e identificáveis. Não é possível falar em fraude contratual, interposição de empresas de fachada, nem reinvestimento financeiro em atividades destinadas a ocultar a origem dos recursos. Nem todo dinheiro gasto é branqueado. Se não há ocultação da titularidade, da origem, do valor ou da destinação dos bens, não se pode cogitar enquadrar a conduta em lavagem de capitais. A intermediação por terceiro, ainda que de forma consciente, não pode ser suficiente a configurar o tipo penal quando não se faz acompanhar de outros elementos reveladores de intenção fraudulenta.

Essa ampliação desmedida do conceito de lavagem de dinheiro é perigosa, pois transforma atos posteriores ao crime antecedente — que integram o seu desdobramento natural — em novos delitos, criando um bis in idem travestido de sofisticação jurídica. Trata-se de uma inflação penal travestida de zelo repressivo, mas que, na prática, fragiliza as garantias fundamentais do réu e desequilibra a balança da justiça criminal.
A criminalização da mera destinação do produto do crime, sem prova de que o agente buscou ocultar ou dissimular a origem dos recursos, não encontra respaldo na lei. O tipo penal de lavagem, previsto no art. 1º da Lei 9.613/98, é claro ao exigir conduta deliberada nesse sentido.
Em tempos de endurecimento penal e sensacionalismo judicial, é dever da advocacia criminal preservar a coerência dos institutos jurídicos e denunciar interpretações que transbordam os limites da legalidade. Combater a corrupção, sim — mas dentro da moldura do devido processo legal, respeitando os contornos típicos de cada crime. Não é a expansão da tipicidade penal que protegerá o Estado de Direito, mas sua fiel observância.
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